terça-feira, 29 de outubro de 2013

1964, o incêndio da UNE e a perseguição

A União Nacional dos Estudantes que resistiu ao fogo, às balas, e ao sangue daqueles anos de dor

O Brasil testemunhou a nauseante marcha de ventríloquos no dia 19 de março do fatídico ano de 1964, que entrou para a história sob a alcunha de Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Mas para que liberdade rumava aquela classe média que nunca gostou de rua? Rumou para o abismo de sangue que latejou por 21 anos; viu seus filhos, estudantes e trabalhadores, morrerem com requintes de crueldade nas mãos de um poder de chumbo, onde democracia e liberdade deixaram de participar do vocabulário nacional.

O futuro trágico dessa juventude começou a ser marcado - com traços de sangue, fogo e desespero – naquela madrugada do dia 31de março para 1 de abril. O presidente João Goulart, o popular Jango, já havia sido deposto pelos Senhores de Farda, e o próximo passo seria a busca alucinada por exterminar todo e qualquer grito, ou mesmo suspiro, de emancipação, de questionamento, de luta pela democracia e pela liberdade do povo brasileiro. E é claro que o regime repressor dos militares se preocupava muito com os anseios e vigores da juventude pelas ideias e ações libertárias, sobretudo a juventude organizada e dotada de conhecimento. A já histórica União Nacional dos Estudantes (UNE), que gozava de 27 anos de luta, foi um dos primeiros alvos – se não o primeiro – do então governo militar/fascista do Brasil.

 As chamas se espalham pelo prédio da União Nacional dos Estudantes no ataque dos militares em 1964 / Foto: Memória UNE
Tão pronto os militares decretaram o fim da democracia no país, os tanques e soldados – que também marchavam vendados – cercaram os arredores do número 132 da Praia do Flamengo, na Zona Sul, do Rio de Janeiro – a sede da União Nacional dos Estudantes. Ali estavam reunidos estudantes de diversas universidades do Rio de Janeiro e do Brasil, e muitas lideranças da entidade estudantil, que após receberem a notícia do levante dos militares optaram por permanecer em vigília na sede da UNE para acompanharem juntos os acontecimentos seguintes. A decisão quase custou a vida de todos naquele momento – infelizmente muitos não escaparam depois - a sorte foi que um militante estudantil, Antônio Carlos Peixoto, assim que soube dos rumores sobre o decreto do Golpe se apressou para avisar os companheiros e companheiras da necessidade de agilizar a retirada. Vinha chumbo grosso pela frente!

As centenas de estudantes mal conseguiram sair do prédio e o aparato repressor do exército fascista brasileiro já metralhava o prédio da UNE e hasteava fogo sobre a Casa dos Estudantes. As cenas de guerra começavam no Brasil, o medo de pensar diferente pulsava e a punição agora era a morte. Os estudantes que escaparam por pouco ainda puderam ver o prédio onde viveram tantas histórias e onde construíram tantas lutas arder em chamas e ruir desesperadamente, assim como seus corações naquele momento de angústia, medo e de grande incerteza.
Mas é claro que os estudantes não puderam ficar ali assistindo a edificação ruir em brasa, é claro que não. Agora eles não eram mais simples universitários e militantes, eram perseguidos políticos e muitos até terroristas perigosos - assim contava a carochinha fardada e, nos anos seguintes, televisionada.
A ação do governo militar golpista deixa um cenário de destruição na Praia do Flamengo / Foto: Memória UNE

Os estudantes fugiram dali, e atordoados foram em busca de organização, força e união; os estudantes correram à procura de companheiros, à procura de unidade – afinal quanto maior o número, maior a força. A militância e os líderes que estavam no prédio da UNE seguiram para a Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ, para o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO).
Outras tantas dezenas de jovens já estavam no lendário prédio da FND, reunidos no CACO para discutir, deliberar, encaminhar, temer, o que já acontecia no Brasil e o que ainda havia por vir. Os estudantes fugidos da perseguição na sede da UNE se encontraram com os tantos que já estavam na Faculdade Nacional de Direito à procura de refúgio, força e segurança. Mas não era esse o plano dos militares.

O exército do poder golpista viu a chance de liquidar de uma só vez diversos líderes e potentes militantes estudantis – que certamente não deixariam de lutar pela libertação do país e ainda dariam muito trabalho para os sangrentos órgãos de repressão do governo. O amontoado de militares que metralhou e incendiou o prédio da entidade estudantil seguiu para o CACO da UFRJ; mais e mais milicos vinham de toda parte para cercar o Centro Acadêmico - na ânsia comandada por terminar o serviço da Praia do Flamengo, 132.
Neste momento entrou em cena um daqueles valorosos heróis que ficam marcados pela coragem e pela defesa do povo brasileiro, o capitão do exército de Jango, Ivan Cavalcanti Proença. Ivan, legalista e antigolpista, que era capitão do Regimento Presidencial (Dragões da Independência) e comandante da Guarda do Ministério do Exército; estava comandando um destacamento nos arredores da FND.

Os soldados da ditadura já haviam cercado completamente o prédio, apontavam dezenas de metralhadoras e já arremessavam bombas de gás lacrimogênio e granadas dentro da faculdade. A correria e o desespero dos estudantes foram generalizados, jovens caídos pelas escadarias e uma angústia latente ecoava nas centenárias paredes da FND.  A saída estava cercada e próximo passo seria a invasão covarde e cruel. Neste momento, o então capitão Ivan Proença ordenou a resistência de seus subordinados, apontou o tanque para as tropas do exército, que segundo o próprio Ivan, estavam prontas para metralhar qualquer estudante que ousasse sair; e afugentou os iminentes assassinos. Em seguida, o capitão Ivan Proença ordenou e comandou sua tropa na desocupação do prédio, Ivan conta que subiu rapidamente as escadarias do edifício abrindo as janelas e auxiliando os estudantes a partirem em retirada.
Naquela manhã de 1 de abril de 1964 nenhum estudante foi morto pela ditadura militar na Faculdade Nacional de Direito – mas certamente não teriam a mesma chance se o bravo Ivan Proença não estivesse ali.

Entretanto e infelizmente, nem Ivan, nem Marighela, nem Maurício Grabois, nem Lamarca, nem João Amazonas, nem Honestino, nem tantos outros heróis que lutaram nessa incicatrizável época; conseguiram salvar tantos estudantes, brasileiros e brasileiras, daqueles 21 anos de tortura, de dor e de morte. Muitos daqueles que conseguiram fugir do incêndio da Praia do Flamengo, ou serem salvos pelo capitão legalista Ivan Proença, não tiveram a mesma sorte meses ou anos depois. Muitos estudantes tombaram, pagaram com a vida, e pagaram por acreditar em um país mais justo e democrático, pagaram por pensar diferente, pagaram por não aceitarem entregar o Brasil e nossa soberania.

Entretanto e felizmente, o sangue derramado e a história de luta desses estudantes seguem vivos nos corações e na ânsia de mudança das gerações seguintes. Entretanto e felizmente, a bandeira da União Nacional dos Estudantes não deixou de ser empunhada e não parou de tremular mesmo durante esses anos sombrios e mesmo diante de tantos outros desafios da história do nosso país - que também se confunde com a história da UNE, que neste ano completou 76 anos de existência, de rua e de conquistas. Entretanto e felizmente, a luta dos estudantes não parou e não irá parar – muitas batalhas vieram depois daqueles anos e muitas vitórias também.

O terreno da Praia do Flamengo 132, por muitos anos passou a ser um estacionamento, onde muitos esqueceram o que ali se passou, o que ali se construiu. Mas os estudantes não.
Em 2 de fevereiro de 2007, milhares de estudantes de todo país se reuniam no Rio de Janeiro, no bairro da Lapa, para a 5ª Bienal da UNE. E aos milhares os estudantes marcharam com muito entusiasmo, empunhando e sacudindo muitas bandeiras da entidade, cantando suas palavras de ordem; rumo ao lugar de onde nunca deveriam ter saído, rumo à Praia do Flamengo 132, rumo à Casa da UNE. Naquele dia, os estudantes derrubaram o portão e ocuparam o terreno; dia após dia, mês após mês, se revezaram na ocupação até garantirem a vitória na justiça: a reintegração de posse. Finalmente, os estudantes poderiam voltar pra casa.

A luta dos estudantes no Brasil atravessou gerações e nunca parou de pulsar, ao contrário do que tenta mostrar nossa grande mídia na sua busca incessante por desqualificar e criminalizar os movimentos sociais e as lutas populares.  A mesma mídia que ajudou a colocar os militares no poder, tenta construir na sociedade a ideia de que a luta estudantil de nada vale, ou que até mesmo nem mais existe. Mas os estudantes do Brasil continuam sua sina de luta e mesmo contra a vontade dos poucos e tão poderosos não vão parar de lutar.

Quase 50 anos após aquele repugnante episódio, a União Nacional dos Estudantes continua de pé e conquistando. A UNE em 2013 alcançou uma das principais vitórias do movimento estudantil brasileiro: a aprovação dos 75% dos Royalties do Petróleo para Educação – uma bandeira que foi inicialmente levantada em uma das tantas plenárias dos jovens da UNE, e foi ganhando força com muita mobilização dos estudantes, ganhou apoio de outros segmentos da sociedade, e finalmente foi aprovada. A perseguição nunca será esquecida, mas os estudantes do Brasil seguiram lutando e conquistaram uma vitória épica para o futuro da educação brasileira. Contrariando tantos, os estudantes comemoraram a conquista - como em vários outros momentos da luta estudantil – bradando: “Nas ruas, nas praças, quem disse que sumiu? Aqui está presente o Movimento Estudantil!”
Parece ser esse o recado que fica para as gerações seguintes e para os que ainda duvidam da força e do vigor dos estudantes brasileiros na defesa de uma pátria melhor, mais justa e soberana.
Terreno da UNE após a reintegração de posse dos estudantes. No local será construído o novo prédio da entidade, projetado pelo saudoso arquiteto e ex militante estudantil, Oscar Niemeyer / Foto: Memória UNE

Por: Bruno Ferrari Baptista

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